REFLEXÃO PASTORAL: ESTRUTURA QUE RETIRA A DIGNIDADE

REFLEXÃO PASTORAL: ESTRUTURA QUE RETIRA A DIGNIDADE

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Foto: Ateliê 15

Klédson Tiago Alves de Souza – Articulador da Cáritas

 

A narração desse texto do evangelho de Mateus (25, 31-46) é muito forte. A provocação de uma separação que para um lado, direito, irão as ovelhas e para o outro, esquerdo, irão os bodes, lembra-nos também a passagem em que se separa o joio do trigo, do mesmo autor (Cf. Mt 13, 24-46).

Nesse curioso texto, há uma expressão muito cara, que é dita após os motivos da separação, a saber: “toda vez que fizeste a um desses meus irmãos mais pequeninos” (v. 40). O que quer dizer essa expressão? Quem são estes irmãos pequeninos? Ora, no lugar de fala em que Jesus se põe, estes pequeninos são todos e todas aqueles e aquelas pessoas que passam por necessidade. E na lista que é elencada aparecem as seguintes necessidades básicas: comer, beber, acolher, vestir, visitar (ir ao encontro do outro, na doença), ver o outro quando preso. Essas necessidades são primícias para se assegurar uma dignidade da pessoa humana. Reflitamos, pois, brevemente acerca de duas dessas necessidades, a saber, comer e beber.

Comer. Segundo relatório da ONU emitido em 2018 temos 821 milhões de pessoas que passam fome no mundo. No ano de 2017, conforme apontam os números, 5,2 milhões de brasileiros passaram um dia ou mais sem se alimentar. Segundo O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo documento emitido pelas instituições FAO, OMS, PMA, Unicef e Ifad: “A situação está piorando na América do Sul e na maioria das regiões da África. Igualmente, a tendência de queda observada na Ásia segue em desaceleração”. “Estive com fome e não me deste de comer” diz Jesus aos bodes. Por que temos fome no mundo? O que causa a fome? Será que é verdade que “[…] na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer, enquanto o outro ri”, como cantava Tim Maia? No ano de 2002 a CNBB lançou um documento muito rico, que o tempo fez os agentes de pastorais, movimentos e grupos esquecerem, chamado: Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome, Doc. 69. Nesse documento há uma explicação dos motivos estruturais que faz com que a fome exista e até seja necessária para a engrenagem macroeconômica do capital. Dentre os apontamentos proféticos de denúncia, diz o número 13:

As raízes da fome estão, especialmente, na distribuição iníqua da renda e das riquezas, que se concentram nas mãos de poucos, deixando, na pobreza, enormes contingentes populacionais nas periferias urbanas e nas áreas rurais. Essa concentração de renda e riqueza vem de longa data e segue uma lógica na qual o crescimento econômico do Brasil sempre aumenta a riqueza dos ricos, sem estender seus benefícios a quem não tem poder no mercado. A desregulamentação e flexibilização dos mercados vêm retirando do Estado sua função social e política, em prejuízo de seu dever de justa intervenção na economia e na redistribuição da renda. Entregue à lógica do jogo de concorrência que lhe é própria, o mercado premia os fortes e pune os fracos, aumenta o desemprego e oferece remuneração tão baixa aos trabalhadores e à maioria dos aposentados que não lhes permite adquirir alimento para uma subsistência saudável.

É a ganância dos donos dos meios de produção, dos capitalistas que faz com que exista a fome. Não é porque falta comida para todo mundo, é porque o mundo não tem matéria suficiente para saciar a ganância. É uma estrutura econômica que está posta, que ganhou força ao longo dos anos, e que tem matado e mata, ainda hoje, muita gente. Qual a base dessa estrutura? A concentração de renda e poder.

A resposta a esse grave problema é a criação evangélica de uma cultura de solidariedade. Tal cultura promove a libertação integral do homem. Ou seja, o preceito posto em Mateus 25 de dar de comer a quem tem fome não se reduz ao mero assistencialismo. Há implicitamente na prática de atender essas necessidades básicas – que devem ser atendidas – a libertação do ser humano, a promoção de sua dignidade. No contexto da Gaudete et Exultate do Papa Francisco, poderíamos afirmar que quem promove a cultura da solidariedade: isso é santidade.

Sede. “Tenho sede” (Jo 19, 28) bradou Jesus do alto da cruz. Eis aqui a segunda necessidade básica que garante a dignidade do ser humano. Segundo o relatório da OMS e do UNICEF, “cerca de três em cada dez pessoas — em um total de 2,1 bilhões — não têm acesso a água potável em casa, e seis em cada dez — ou 4,5 bilhões — carecem de saneamento seguro”. Há, em curso, uma comercialização de um bem que deveria ser comum: a água. Porque não basta ter acesso à água, é preciso, todavia, que esta mesma água esteja em condições necessárias para consumo. O Papa Francisco denunciou na Encíclica Laudato Si’ (n. 30): “Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado”. Parece até, inclusive, que o Papa está a falar diretamente sobre nosso Nordeste, tão castigado com a seca, com a falta de saneamento básico e com o comércio da água. Quantos não são os políticos eleitos a partir da indústria da seca? Dentro daquela estrutura econômica e de poder aonde o cerne é a concentração, está a questão da água que acaba por ser privada a alguns, e este fazem uso de forma irresponsável, não sendo solidários com aqueles que estão a beber às margens de rios poluídos com sujeira de hospitais e outras instituições. Diz o poeta popular, Agostinho Francisco dos Santos, após retratar a realidade do sertão, e profeticamente criticando a estrutura política:

Político só engana

Com a conversa sem graça

Diz o que faz e não faz

Mente bastante na praça

Esquece o sofrimento

Do boi virando carcaça

 

Porque a falta de chuva

Movimenta outro cenário

Neste tempo de estiagem

Mesmo sendo temporário

O político aparece

Sendo um intermediário

 

Com essa indústria da seca

Monta uma grande estrutura

Políticos e comércio

Bastante alto ele fatura

Com a falta de alimentos

Essa é verdade pura.

Esses são fragmentos de um cordel intitulado “A indústria da Seca”, publicado em 2013. Os problemas sociais que ferem a dignidade das pessoas são políticos sociais. É nossa responsabilidade como liderança de pastoral ou de qualquer organização popular discutir claramente com nosso povo e mobilizar para tais enfrentamentos. O líder mobiliza a partir da construção de um diálogo aberto. Agora, para isso é preciso muita parresia, pois nem sempre é uma luta fácil!

Mesmo a realidade sendo tensa, podemos lutar e construir um poder popular que garanta os direitos a todas oprimidas e todos oprimidos da história. Pois estes que são os pequeninos ditos por Jesus, são os empobrecidos, os excluídos, os sem-terra e sem-teto e toda e qualquer pessoa que sofra opressão. É pelo direito e pela justiça que seremos libertos (Cf. Is 1, 27).

Sigamos, pois, na luta.

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